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Entrevistas

Entrevista: Andressa Nunes

“O Mandacaru Intergaláctico” é uma carta de amor ao sertão escrito pela cantora baiana Andressa Nunes. Lançado em 2020, o álbum contêm 13 faixas que fluem como um abraço, como em “A Bahia é Grande”. Isso sem perder a mão nas experimentações, como a technobrega “Bagaceira”.

O álbum foi gravado em Juazeiro, BA com coprodução de Iago Guimarães, da Casinha Lab. Todas as letras, bem como a arte da capa e as artes personalizadas das músicas no Youtube, são assinadas pela própria cantora.

Andressa canta que “o sertão é a resposta”. Então, fazendo o caminho contrário, fizemos um monte de perguntas sobre “O Mandacaru Intergaláctico”. Confira:

Andressa, a gente pode começar falando sobre o caminho que levou até “O Mandacaru Intergaláctico”. Em 2019 você lançou vários singles, certo? Como foi esse período entre os singles e a composição do álbum? 

Sim, em 2019 eu decidi publicar algumas experimentações caseiras que estava fazendo sozinha e sem muitas pretensões. Dessas, a minha preferida é “Ana(r)coluto”, que é uma música bem antiga mas que gosto bastante da letra, cheia de referências à filosofia da mente e à gramática da língua portuguesa.

Como meu processo de composição é bem aleatório, não houve um ponto específico em que eu decidi compor “O Mandacaru Intergaláctico”. A música título, por exemplo, foi escrita há mais de cinco anos, enquanto “Bagaceira” foi escrita na hora de entrar no estúdio, praticamente.

Algumas músicas (talvez o álbum inteiro, até) são verdadeiras cartas de amor ao sertão, à Bahia, ao Nordeste como um todo. Na primeira música você já canta que “o sertão é a resposta”. O que te motivou a compor essas letras? O que você estava sentindo nesse período?

O sertão, principalmente por sua adaptabilidade e riqueza cultural, pode ser a resposta para muitas das questões sociais que temos enfrentado.

“O sertão é a resposta” num sentido geopolítico, de olharmos para as riquezas e para os modos de vida da população dos vários sertões do Brasil (os rincões da Amazônia, do Centro-Oeste, dos Pampas, das Caatingas), que num geral conseguem conviver melhor com a natureza e produzir seu próprio alimento. Mas também o sertão pode ser uma resposta mais íntima: compreender de onde vim e a linguagem que me habita foi um processo importante para me deixar levar pela música que há tanto tempo componho.

A motivação maior para reunir essas canções foi justamente olhar no espelho da palavra, já que na época eu estava sentindo uma saudade de mim que tomou a forma (espinhosa, mas bonita) de um mandacaru. Há também uma motivação política – toda arte é política, inclusive a “neutra”.

Falar do nordeste como algo contemporâneo, sem saudosismos, sem estereótipos, é uma forma de trazer luz a questões que estão em voga como a xenofobia e o machismo. Eu quis trazer um sertão que se deixa permear pela modernidade, mas sem medo de criticá-lo também, como em “A Última Cajuína do Sertão”.

Vale ressaltar que não é uma questão de fazer o nordeste virar uma pauta identitária, pelo contrário: quero falar das suas pluralidades e das suas contradições, da ignorância e do saber, com consciência e sem vitimismo. O sertão não precisa de narrativas sensacionalistas. Fico com as narrativas sensoriais.

Quais foram suas referências musicais e de outras fontes? 

Na música, posso citar Cátia de França, Alceu Valença, Tom Zé, Luís Gonzaga, Dominguinhos, Caetano Veloso, Daniela Mercury, os Beatles, Björk, Zé Ramalho, Baiana System.

De outras fontes, acredito que Guimarães Rosa tem uma presença marcante na minha relação com o sertão feito de palavra. Também gosto bastante de cinema, e obras como “Bacurau” e “Deus e o Diabo na Terra do Sol” atravessaram bastante meu processo criativo.

Pode falar um pouco da parte instrumental do álbum? Quais os demais músicos que participaram? Como foi bolar esse som? 

Eu toquei violão em todas e guitarra em algumas das músicas. O restante (bateria, baixo, teclas) ficou por conta de Iago Guimarães, do Casinha Lab em Juazeiro, BA (que coproduziu e mixou as músicas) e do Wagner (percussões diversas) como representante da Camerata Matingueiros de Petrolina, PE.

Bolamos o som seguindo o fluxo das letras, eu já tinha em mente o clima e a instrumentação que desejava e os meninos foram geniais e muito generosos ao me escutar e trazer novos elementos para a brincadeira.

O álbum foi lançado no ano em que a pandemia chegou. Já que os shows estão inviabilizados, como foi feita a divulgação do trabalho?  

Divulguei apenas pela internet e também entre amigos e familiares. As novas pessoas que têm chegado para escutar têm sempre me surpreendido positivamente, já que infelizmente não pude fazer nenhuma ação de marketing mais grandiosa. Mas o fluxo da vida, dos algoritmos e das canções tem uns mistérios interessantes.

Tem previsão para clipe?  

Tenho gravados takes de clipes para “Mulher Apocalíptica” e para “Manequim”, mas te confesso que sou eu que faço tudo na minha “carreira”, então a falta de tempo para editar está pesando bastante nesse aspecto. Quem sabe esse ano ao menos esses dois não saem, né?

Num momento em que o Brasil parece estar sendo atacado diariamente pelo que tem de pior nele mesmo, é realmente um respiro ouvir algo que fale com a gente assim, né? Na música “O Absurdo” você escancara esse clima que a gente vive. Você vê alguma esperança pra esse absurdo tanto na via artística, social ou política?

Nem medo, nem esperança: tenho confiança na ética e na capacidade de se transformar que o Brasil tem.

Certamente é um processo lento e meu grito de “não me deixe achar normal o absurdo” resume esse chamado para que não deixemos a ignorância e a necropolítica se tornarem a voz da vez, como se fossem uma certeza fatal contra a qual teremos que lutar o tempo inteiro. Não. Não é normal, não é o nosso normal e não existe um “novo normal”: esse desmonte da coisa pública e o descaso com tantas vidas é uma aberração.

Tenho fé em grande parte da população que se preocupa consigo mesma, mas que também busca ajudar o próximo. Tenho confiança na ciência e nas instituições de ensino e no seu papel político tão fundamental e de tanta resistência. Tenho fé nos artistas independentes, principalmente nos que produzem arte em vez de produto: a revolução também virá pela beleza, pelo sublime e pela coragem.

Mas a mudança é silenciosa e lenta, e enquanto ela não vem, vamos agindo aos poucos para combater os fascismos que nós mesmos reproduzimos com arte, muita solidariedade e muita paciência.

“O Mandacaru Intergaláctico” está disponível nas redes de stream.