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Resenhas

Atentas: o legado de Charlotte Matou um Cara

A Charlotte Matou um Cara foi formada em agosto de 2015 em São Paulo por Andrea (vocalista), Dori (baterista), Camila (baixista) e Nina (guitarrista), e se destacaram na cena pela atitude e pelas letras combatentes. 

Inspiradas em Charlotte Corday, pelo movimento riot girrrl e pelo feminismo interseccional, a banda lançou um álbum homônimo em 2017 e, em 2021, criou um financiamento coletivo para lançar “Atentas”, segundo disco de sua trajetória.  

“Atentas” foi lançado em outubro daquele ano, tem 10 faixas e aproximadamente 23 minutos, porque é um disco punk como deve ser: direto, sem meias palavras. Tanto que já começa com Andrea gritando, em alto e bom som, “Você quer me matar”, na faixa que leva este nome, e termina com outro grito: “Eu vou te ver queimar”, mostrando desde o início que o tom aqui não é apenas expor os problemas e sim lutar contra eles. Estamos vivas, apesar de vocês. 

Aliás, o clamor por uma revolução social é a pauta presente do disco. A segunda faixa, “Epidemia”, uma crítica direcionada aos falsos religiosos que tomaram conta da política nacional e usam religião para dominar corpos e mentes, termina dizendo que do povo virá a revolução. E não há como ser de outro jeito, a gente sabe e os últimos anos de absurdos validados pela mídia de massa confirma a tese. 

E esses absurdos que ouvimos e vimos nos últimos anos, se ligam ao tema da terceira faixa do disco, “Angry People Click More”, afinal, já é fato comprovado que a extrema direita moderna se esconde por trás de telas.

O disco segue com “Buceta Dentada”, faixa sobre a qual nem consigo falar nada. Só vou deixar a letra aqui: “Me querem em pedaços, bunda, coxa e teta. Me querem bem quietinha, enquanto me violentam. Meu corpo não é dócil e nem é governável. Não vou pedir desculpas por te deixar desconfortável” 

PESADO! 

E como estamos nesse ritmo, “Veneno” já começa afirmando “Todo dia que eu acordo, tenho um direito a menos”. Mais uma faixa que chama as mulheres para lutar por mudanças, “Veneno” é a síntese do sentimento que nós, mulheres, vivenciamos há anos, mas especialmente nos últimos quatro, assistindo à eleição de um homem que já disse para uma mulher, em tom de superioridade, que não a estupraria porque ela não merecia e que vetou uma lei que distribuiria absorventes para pessoas de baixa renda. 

E se falamos deste que não deve ser nomeado, falamos de uma série de homens que acham que estamos ficando mais chatas, por não aceitarmos mais assédio travestido de elogios e piadinhas machistas. “Todas Juntas” é direcionada a eles.  

“Festa Punk” é a mais “leve” do álbum, clamando, de forma descontraída, por mais músicas feitas por mulheres sendo tocadas em festas, trocando Stones por Mercenárias e Beatles por Dominatrix. Aparentemente, inofensiva, é possível ligar a letra da música a uma crítica necessária sobre a falta de mulheres nos line ups de festivas. E não estou falando do mainstream apenas, o underground ainda tem muito o que melhorar nesse aspecto. 

As três últimas músicas do disco, “1964”, “Revolução Popular” e “Atentas” encerram relembrando as mulheres que foram torturadas (algumas foram mortas na ocasião) por lutar por nossos direitos no passado, incluindo a ex-presidente Dilma Rousseff, e a necessidade de nunca esquecermos seus nomes e nem a violência que sofreram, para que as futuras gerações entendam a força da revolução popular, como e porque se deu o mais recente golpe de Estado no Brasil e o quanto o machismo ainda está forte nas raízes deste país que parecia, à primeira vista, tão libertário e progressista tempos atrás. 

“Atentas” foi e é importante por mostrar a força do punk feminista. Foi um disco feito por mulheres, para mulheres, em um financiamento coletivo. E ficará como legado da banda até que um dia, quem sabe, ela volte aos estúdios e palcos com todas as integrantes juntas, já que no início de 2022, a vocalista Andrea se mudou do país e a Charlotte fez seu último show em março, na Fenda 315, em São Paulo. 

Além de pedir as fotos para ilustrar essa resenha, pedi para Paola, mais conhecida como @aminadasbandas, falar sobre o show e ela me mandou essa mensagem, que sintetiza o legado que a Charlotte deixou junto de “Atentas”:

Acho que falar de um show de Charlotte Matou Um Cara é mais do que falar de algumas músicas cantadas. É sobre olhar pro lado e ver todas as minas berrando junto, é sobre sentir a indignação em cada nota tocada, é acolhimento, pertencimento e identificação. A gente sabe que o mundo tá horrível, mas é estar ali na frente, no meio de tanta gente, e se dar conta de que (por pior que esteja) a gente sempre tem alguém pra expressar os nossos sentimentos raivosos da maneira mais direta e sincera possível.