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Entrevistas / Resenhas

Cosmogonia: hoje

Essa é a segunda parte da nossa matéria sobre a Cosmogonia, se você não viu a primeira, leia aqui antes de começar esse texto.

Hoje formada por Gabi (vocal), Teté (guitarra), Andressa (baixo) e Dani (bateria), em 2017, dez anos após o início do hiato, Cosmogonia voltou e em 8 de Março de 2019 lançaram o EP “Reviva!”.

Sonoramente “Reviva!” é bem parecido com “O Sentir Que Violenta”, o que faz todo sentido, já que foi a última coisa que elas gravaram antes do hiato. As letras continuam tendo foco no empoderamento feminino.

“Grite, fale, jamais desista. Grite, ria, lute e resista que amanhã haverá sua paz, que dias ruins ficaram para trás”.

“Tempo” é a música mais rápida do EP e o clipe dela é o primeiro da Cosmogonia, lançado em 10 de Outubro de 2019, Dia Nacional de Luta Contra a Violência à Mulher. Ele consiste em imagens ao vivo da banda desde o retorno.

Abaixo você confere nossa entrevista com a banda:

Acho que podemos começar falando sobre o início da banda. Nenhuma das meninas estava na formação original dos anos 90, certo? Como foi a entrada de cada uma?

Atualmente não há nenhuma menina da formação original. A Elis (fundadora) ficou até 2007, quando a banda entrou em hiato. Teté entrou em 2002, Gabi entrou em 2004 e Dani entrou em 2005. Em 2017 revivemos com três integrantes dos anos 2000: Teté, Gabi e Dani (batera) e logo depois Karol (baixista) entrou. No final de 2018 a Karol saiu e entrou o Fernando. Em 2019 a Dani saiu, entrou a Andressa no baixo e o Fernando foi pra batera. Agora, em 2020, a Dani voltou pra bateria e o Fernando saiu.

Teté: Em 2002 eu estudava na escola do menino que tocava bateria na época para a Cosmogonia e também na escola da ex-guitarrista, Raquel. Aí souberam que eu tocava guitarra, me disseram que estavam procurando uma mina guitarrista. Foi aí que conheci a banda, mas cheguei a enrolar um pouco pra ir fazer o teste por insegurança. Quando finalmente criei coragem, fui e foi perfeito. Me apaixonei pelas meninas, por tocar com elas, pela história da banda e aí me disseram que já tínhamos um show marcado no Hangar 110, que na época era o sonho de qualquer banda da cena, né? Então minha entrada já foi logo de cara tocando num show do Hangar!

Gabi: Eu entrei pouco depois em 2004, já tinha relacionamento com a banda desde 98 e morávamos no mesmo bairro. Quando recebi o convite de fazer um teste para tocar nessa formação dos anos 2000, apenas a fundadora Elis, estava na banda. Nessa época, também contávamos com o Paulo, que integrava a lendária banda Punk Atitude.

Andressa: A minha entrada foi com uma responsabilidade enorme. Eu estava entrando em uma banda que tem uma puta história, e que eu curtia muito. Fora isso, eu estava substituindo a Karol, que é uma excelente baixista, com uma base musical maravilhosa. Eu tinha a obrigação de estudar pra me sair bem. Tanto que, quando fui convidada a primeira vez pela Gabi, fiquei com muito receio de não estar no mesmo nível. Mas depois de pensar direito, voltei atrás e deu muito certo. Isso foi ano passado, 2019.

Fernando: O Fernando já era amigo da Teté de muitos anos e quando a Karol saiu da banda, chamamos ele pra nos ajudar e cumprir a agenda de shows. Não conseguimos achar nenhuma baixista e ele foi continuando com a gente. Quando a Andressa assumiu o baixo, o Fernando foi pra batera, substituindo nossos dois amigos Roberto e Nautilus, que estavam se revezando como substitutos da Dani.

E como é manter a banda mesmo sem ninguém da formação original?

Inicialmente, achávamos que não faria sentido a banda sem a Elis. Porém, ela mesma nos incentivou a retornar e nos lembrou que a Cosmogonia sempre foi uma banda aberta à novas integrantes e que ao longo dos anos, muitas meninas passaram pela banda e deixaram sua marca, experiência de vida e luta. A particularidade mais importante da Cosmogonia é resistir ao longo dos anos e trazer a vivência de diversas mulheres, que são unidas em torno do mesmo propósito.

Apesar da Elis não estar presencialmente na banda, ela é também um membro que mantemos contato constante e que nos aconselha, dá opiniões, apoia e é responsável por muita coisa que fizemos desde o retorno.

Vocês fizeram um hiato em 2007, né? O que esse hiato representou para vocês?

Em 2007 cada integrante da época estava passando por coisas diversas em suas vidas pessoais que foi impossibilitando de conseguirem conciliar com a banda. Além da questão financeira que era complicada para todas (pagar ensaio, transporte, manutenção de instrumentos, etc), havia também trabalho, estudo, filhos e família.

Então o hiato representou um tempo que precisávamos naquela época, para ser mais compatível com a nossa condição de vida daquele momento e com as dificuldades financeiras e psicológicas que cada uma enfrentava.  Esse tempo foi extremamente triste, pois sempre sentimos muita saudade da banda em si e de estarmos em uma banda.

E nesse tempo, algumas de nós tivemos que lidar com relacionamentos abusivos, violência doméstica, dentre tantas outras coisas que as pessoas não enxergam em vidas que não estão expostas de alguma forma.

Como vocês decidiram que era hora de voltar?

Em 2017, após um período maior sem se verem, Gabi e Teté se reencontraram num show e como elas sempre sentiram saudades de tocar, mencionaram que seria legal montarem uma banda.

De longe a Elis percebeu essa movimentação entre as duas, e também estava muito ligada na movimentação das mulheres no cenário underground, que aumentava a cada dia. Ela então nos reuniu em um grupo de Whatsapp e praticamente exigiu que voltássemos com a banda, mesmo sem ela, que mora no exterior.

No Bandcamp da Cosmogonia a gente percebe que todos os álbuns ali são bem curtos. Existe algum motivo pra essa escolha?

Cosmogonia é uma banda que nasceu na periferia e bandas de periferia, mais ainda, bandas com mulheres sempre foram invisibilizadas pela falta de recursos e também pelo próprio machismo e misoginia, que também existem na música e na cena punk/hardcore.

Sempre dependemos do corre de cada uma, dos amigos de outras bandas e de coletivos que se juntavam para gravar coletâneas (no início ainda em fitas K7). Nunca tivemos grana pra bancar gravação, produção e até o final dos anos 90, a produção de tudo foi com o “faça você mesma”.

Em 2006 lançamos um single, que conseguimos gravar graças a um cachê que nos foi dado de um show. Agora em 2019 lançamos um EP gravado pelo projeto Experiência Family Mob. Fomos selecionadas para participar do projeto, o que nos possibilitou a gravação. A mixagem e masterização foi arcada com nossos próprios recursos e venda de merch.

O que vocês têm escutado nos últimos tempos?

Gabi: Eu tenho ouvido muito folk, bandas clássicas de hardcore dos anos 90, algumas bandas novas e bandas que carrego em playlists ao longo dos anos, como Converge, Million Dead, Pennywise, bandas nacionais como Bioma e Miêta.

Teté: Hardcore sempre! Desde os clássicos que sempre me acompanham (Pennywise, NOFX, Bad Religion) até bandas nacionais: Mar Morto, Garage Fuzz, Bioma.

Andressa: Eu sou extremamente eclética, por mais que dizer isso pareça clichê. Nacional tenho escutado bastante Violet Soda, Miami Tiger, Hayz, Radical Karma. Internacional tenho um carinho mais que especial por uma cantora pop, a Dua Lipa. Acho a sonoridade e influências dela do Disco no último álbum maravilhosas, principalmente no baixo haha. Também o álbum solo da Hayley Williams, tá bem “diferentão”.

O gosto musical de vocês mudou muito do começo da banda até agora? Como vocês incrementam essas influências no som de vocês?

Teté: O gosto continua bem parecido. Claro que sempre surgem bandas novas, mas até hoje ouço praticamente tudo o que eu ouvia desde que entrei na banda. Para compor, obviamente trago todas as coisas que ouço, porém é algo bem espontâneo. Desde que comecei a tocar guitarra, sempre gostei de criar bases e riffs muito mais do que ficar tirando músicas e aí as brincadeirinhas na guitarra vão se transformando em som.

Gabi: Minhas experiências e influências para compor são vivências de silenciamento, violência doméstica e o sentimento de como eu gostaria de que as coisas fossem diferentes na sociedade em que vivemos.

Andressa: Eu comecei a ouvir mais hardcore. Eu sempre escutei um rock alternativo, muita coisa de pop rock e pop. Acho que sou a única a ter influências totalmente diferentes. E isso que é o interessante de fazer parte de uma banda, poder criar coisas novas juntando um pouco de cada gosto, cada influência. Cada um coloca uma pitada do que curte. Eu depois que entrei já andei dando umas pequenas modificadas no baixo nos shows.

Estamos num momento de bastante ebulição em questões políticas e sociais, com os protestos tomando conta dos Estados Unidos e agora estourando de volta no resto do mundo. As letras da Cosmogonia sempre fizeram questão de falar abertamente de assuntos assim, principalmente na questão feminista. Como a obra da banda se comunica com um momento tão intenso como o que está acontecendo agora?

Gabi: Cosmogonia sempre foi uma banda de periferia, de mulheres guerreiras que sempre tiveram que correr atrás pra se sustentar, sustentar filhos, família, a si próprias, levar o feminismo para aquelas que nunca puderam falar e se expressar. Falar dessas experiências coletivas e individuais é um ato político. Desde as criações antigas até as novas, sempre levamos a contestação do quanto é difícil a sobrevivência das mulheres na sociedade. Ser mulher é um ato político.

Teté: Estamos num momento em que fica cada vez mais exposto o engano do capitalismo: ele não é um sistema para todos e nós, mulheres, vemos, vivenciamos e sentimos na pele isso todos os dias. Como disse Simone de Beauvoir: “Basta uma crise política, econômica e religiosa para que os direitos das mulheres sejam questionados”. Como o próprio capitalismo coloca em xeque o tempo todo as questões das minorias, que no sentido quantitativo é a maioria, fica cada vez mais difícil aceitar as condições que esse sistema nos impõe. Como a banda e suas integrantes ao longo dos tempos sempre fizeram parte dessas minorias, não apenas por serem mulheres, todas essas pautas estiveram sempre presentes nas letras, canções e ideais.

E como vocês observam a evolução de debates assim na cena underground durante a trajetória da banda?

Sempre houve a invisibilização de atos e atividades lideradas por mulheres ao longo da história, e no cenário underground não é diferente. E hoje, mesmo que com uma visibilidade um pouco maior por conta das mídias sociais, ainda estamos em uma posição de falar para nós mesmas, de criarmos nossos espaços paralelos porque ainda há muita resistência de estarmos igualmente nos espaços “comuns”, que são majoritariamente masculinos.

E o que mais chama a atenção é que as poucas pessoas que parecem estar preocupadas com a maior visibilidade dessas minorias em canais de divulgação, somente fazem isso para não se sentirem cobradas e não por acreditarem e respeitarem o nosso trabalho.

Há uma comunicação com outras bandas Riot Grrrl em outros estados?

Sim, sempre. No passado, mesmo antes da internet e depois, quando só poucos tinham acesso, as bandas de mulheres sempre se comunicaram. Cosmogonia tocou em diversos estados antes dos anos 2000 e também trazia as bandas de mulheres de outros locais para tocar em São Paulo. Mas com a internet, foi possível ampliar muito essa rede e união.

Em tempos de quarentena, como estão os projetos futuros?

Fica um pouco complicado pensar em futuro nesse momento. Acho que o foco maior agora é sobreviver a essa pandemia e a esse desgoverno. Sobreviver financeiramente e emocionalmente. Mas estamos compondo remotamente e nos falando diariamente.

Gostariam de dizer algo para as demais mulheres que estão ou querem entrar numa banda?

Quando o assunto é mulheres assumindo papéis em projetos, o direcionamento é sempre insistência, persistência e paciência. Nada acontece da noite para o dia, e, principalmente para nós mulheres os obstáculos são maiores. É importante buscar redes de apoio com as mulheres que já fazem qualquer tipo de trabalho artístico.

A discografia da Cosmogonia está disponível no Bandcamp e redes de stream.